01 outubro 2009

Barcarola

Ela passava, passos instáveis; ora cravo, ora rosa. A areia quente exalava cheiro da paisagem, um tanto maltratada pelo descaso cotidiano. Tá vendo, filho? O dia tá lindo hoje, um sol bem brilhante... Humm... Umas poucas plantinhas, insignificantes, as coitadas, acenavam sem sucesso. Tudo bem, eles estão ocupados, mas um dia olharão para nós. Ela olhou, logo após tê-las chutado, o chinelinho rodopiou escapulindo. Pára de chutar, bebê! No futuro vai ser bem jogador de futebol. É cedo pra pensar nisso. Realmente, ela não queria perder tempo com devaneios. A espera, bem sabia, ia ser longa.
Ela aparou-se na sombra, acariciou a barriga, murmurava num dialeto infantil, levantava o rosto para a brisa que convidava para o verão. Não, agora não. Ele vai chegar lá, já, já. Vem de longe, o atraso dá pra agüentar. Pára um senhor, muito suado, boné do Corinthians. Quanto é? Vinte e cinco, moça. Tem de todo sabor? Tem de todo sabor. Um de limão. Seu troco, obrigado. Ela pegou sem responder, talvez nem tivesse dado conta. Olhava o povo que ia e vinha por perto. Calma, meu filho, papai já vem.
Ela estava muito desligada. Ansiedade tem dessas coisas. Mordiscava com sensibilidade e avidez o picolé, brilhavam os lábios refletindo a eterna busca da própria língua. Liga. Ligo? É melhor não, ele pode ficar com raiva, não gosta que encha o saco assim. Pega o celular, senta e perde tempo com uns joguinhos. Vai passando um pedacinho da eternidade. Um estalinho a atira de leve à atenção: o que foi? Uma briga lá do outro lado, moça. Melhor não ficar por aqui. Ah, valeu! Obrigada. Já, já vou sair.
Ela sentada olha o mar de gente, sexta-feira, arruma o vestido de flor, quer que não atrapalhe a visão da barriga, talvez querendo a visão do feto. Balbucia mais uns mimos, não se importa com a maré de má sorte dos últimos tempos. Papai já vem, fica quietinho! Não chuta! Olha os seios fartos, as pernas cheias e bem contornadas. Sente-se desejável. Orgulha-se, mas não dá tanta atenção às cantadas típicas daquele local. Tira uma foto com o celular, beijinho para a câmera, vê as nuvens enchendo o céu da tarde. Tá vendo lá? Olha só, aquela nuvem parece um sorvetãooo... Bem grandãooo... Aquele parece um barco, ali um peixinho, nadando no céu, hein, filho? Mais um grupo passa, nada da espera passar. Sem desespero, levantou-se, espreguiçou-se com as mãos na cintura, deu uma volta por perto pra comprar um lanche, pisou na pobre da plantinha outra vez, nem percebeu.
Ela vê o movimento aumentar, gente para lá e para cá. Pena não poder aproveitar esse verão, quando ele chegar, aí sim. Não sentia tédio, contentava-se em observar, as pessoas para um lado e para o outro. Celular descarregou. Porra! E se ele ligar? Acho que não, ele prometeu que vinha, ainda tá cedo, né, filhote? Abre um pacotinho de jujubas, engole umas duas de uma vez e senta num cantinho. Assopra. Ri. Ri para uns dois homens que passam. Um deles percebe, ela disfarça. O rapaz sente algo estranho. Tá passando mal, moça? Não, não, tá tudo bem, brigada... E assopra, morde os lábios num desajeitado sorriso de gratidão, estragado por um espremido e indesejável ai. E um mar de gente cruza, mal liga, quase chuta, como quem chuta as plantinhas amassadas nas frestas das calçadas. Uns dois se assustam, correm. Até uma mulher meio trêmula correr para perto. Assopra. Calma, papai já chega... Ai... Que que ela tem? Eu não sei, eu... Corre, pede ajuda! Ai... Calma, respira fundo, minha senhora. Ai...
Ela assopra com mais força, com mais desespero, exibe um sorriso meio chocho, segura os ais com todas as forças. Um policial chega, não sabe o que fazer. Já uns mais desocupados cercam a cena. Uma gota de lágrima cai, uma de sangue também. As flores do vestido manchadas, murchas, não mais tão vivazes. Ai... Calma, minha senhora! A mulher rasga um pedaço de pano, segura as pernas. O sangue ferve, escorre, uns dois pivetes que saíam do trem começam a rir. Calor... Ai... O policial pede espaço. Ela grita mais alto, já sem segurar, como se visse os zunidos das pessoas. Os dois rapazes dizem ter chamado uma ambulância. Outro trem vai partir, as pessoas se apressam. Uma senhora pede o celular dela. Quem sabe se chamar algum parente... Não consegue. O trem parte, as pessoas evaporam. Ela cava o chão com as unhas. Ai... Força... Um outro passa com um isopor. Alguém compra água, joga no corpo, dá de beber. Bebê. Calma, papai já vem. Sai um trem, chega outro mais. Um grito maior, pra dentro, engolido, engasgado no choro. Um mais sensível chora. Chora a criança, nas mãos da senhora que passava. O cordão, a gente tem que cortar, arranja algo! Arranja! Um arranjo foi feito com um canivete do policial, mais água pra limpar. Três de branco entram na estação, abrem uma maca pra levar a moça até a ambulância. Não! Eu não vou! Me deixa em paz! Ele já vem! Ele quem? Ele já vem. A outra mulher, com as mãos manchadas do sangue por baixo do vestido de flor, deixou escorrer uma lágrima. O policial não sabia o que fazer. O bebê chorava. Calma, papai já vem. Os homens a agarram, uma injeção, ela reluta, puxam o bebê, ela reluta, esperneia. Não! Não! Ela se acalma, aos poucos pára, olha grogue para os curiosos, sorri. Tenta falar enquanto os demais aplaudem a mulher que prestou socorro, ainda muito tensa. Tenta falar enquanto é posta na maca...
Respira...
Calma...
Papai já vem...
Papai...
Já...
...
As pessoas correm, outro trem vem chegando, a areia quente trazida nos pés dos outros exalava o cheiro da paisagem, um tanto maltratada pelo descaso cotidiano. Umas poucas plantinhas, insignificantes, as coitadas, acenavam sem sucesso. Tudo bem, eles estão ocupados, mas um dia olharão para nós. Todos correm, já é hora. Um homem vende água, outro picolé. O policial conversa com a mulher com as mãos sujas de sangue, oferece-se para ajudar na limpeza. Você vem sempre aqui? Claro, é caminho pro trabalho. É mesmo, é? Trabalha onde? Lá na zona leste, perto...
A conversa vai baixando, tornando-se insignificante.
O mar de gente vai e volta.
Tocando o barco.

Wander Shirukaya

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