19 fevereiro 2010

Blog Atualizado



Voltamos, após carnaval (que é quando o ano começa) com a nossa primeira postagem deste ano. Vivenciados os mares bravis do mês de janeiro e sobreviventes dos dias mascarados de fevereiro, o Silêncio Interrompido saúda todos os poetas e/ou amantes da poesia.

Arte das palavras

Por ao público
Ótima
Estética
Seu
Intimo
A arte do amor.

Ademauro Coutinho

Extração

Como uma represa transbordando
Expressando claramente a necessidade de cessar todas as forças nocivas,
Declaro a todas as esferas vitais o quão bem seus males me fizeram,
Pois foi secando o encharque maldito
Que instruiu-me de toda essência maleficente,
E aprendi a oportuna proeza
De extrair o bem de onde ele sempre esteve ausente.

André Philipe

[...]

PROCURA-SE UM CHÃO
( onde eu caiba )

Carol Vitall

Mordida

A poesia louca volta a incomodar-me.
Morde-me com a sua boca;
Aquela boca gigante.
Canta-me uma ladainha rouca e dissonante.
Serve-me de bálsamo para as tristes tardes
E para transpor-me pr’outra realidade
Serve-me de ponte.

Cris Souza

Suave Bafo

É fácil beber
Pra ficar engraçado
Para olhar atravessado
Garantir que a noite irá prestar
Por alguns minutos gargalhar
Garotas irão gostar do seu jeito “descolado”
Na manhã seguinte terá alguém do seu lado
- E que alguém?
E que bafo danado?
Quantos na noite “maravilhosa”
Falaram a verdade?
Ou quantos agiram normal?
Quantos leram o jornal...
E viram quem venceu a corrida
E quantos só hoje
Matou a bebida?

Geisiara Lima

SOBREVIVENTES

Restam em homens
força bastante
para serem últimos
e esquecidos
e permanecerem vivos

Restam a poucos
débil dignidade
frágeis loucos
e famintos
e tão sórdidos

Restam resquícios
de pobres povos
desarmados e pardos
e encarnados
no meio do mundo

José Torres (verso avesso / 1987)

P O E M A E P I C U R I S T A

Oh não! Não a mulher verbosa, ereta e longilínea
A mulher eólia, lépida e laboriosa
Ou a mulher paridora de profícuos labregos.
Tampouco a mulher namoradinha do poeta intonso.

Eu quero a mulher marinha, noturna
A mulher poema curto
Com uma carga de eletricidade em cada fio de cabelo.
Meu Deus! Eu quero a mulher que fica
Eternamente, em todas as posições horizontais ou semi-
[-horizontais entre lençóis enlanguescidos
Com um sorriso lascivo entre os lábios de fogo.
Eu quero a mulher que tem
A boca abusada (e calada);
Os seios grandes, imensos
Para alimentar minha meninice de canceriano;
Os pelos fartos e crespos onde
Se perdem facilmente um poeta e seus anelos.
Um cheiro víneo e fêmeo,
Um sabor selvagem a coroar a flor suprema;
As nádegas arrogantemente abundantes e luminosas
Cheias de promessas venéreas e orgasmáticas.
Mulher objeto (?) sim.
A mulher meu cigarro, meu futebol
Minha cachaça, meu livro de cabeceira
Minha poesia.
A mulher sublime.
A dela será até o meu ultimo estertor.

Marcelo Arruda

Carnaval

Carnaval,
Baixio bestial de um ano inteiro comedido.
Não somos como esses pobres aflitos
Que esperam por quatro dias sem pudor.
Em estandartes, grandezas, habilidades com o copo
Língua dançarina frevante (a dois passos do eterno colorido)
Saímos pelas ruas fazendo graça
Mas... cadê as máscaras meu deus?!
-cadê as máscaras?!
Não somos como esses pobres aflitos
Que esperam o ano inteiro comedidos
Por quatro dias de carnaval.
Com máscaras ou sem máscaras
Sempre estamos nus.

P.W

Rodovia

Carros passam e passam
Se arrastando no asfalto
Treminhões de canas trafegam
De um lado para o outro.

Rodovia pára.
Caminhões viram.
Salvam-se pessoas.

Tudo volta
Motocicletas em alta velocidade
Menores dirigindo

Ouvem-se estrondos
Pessoas choram
A morte do cabritinho
Que de cego
Em um piscar de olhos
Viu a luz.

Pollyanna Gomes

Insônia.

Perdido em destroços
de um ritmo lento.
Fragmentado pelo remorso
que produz desalento.
Entrevendo a imagem distorcida,
a paisagem repetida
do vago discernimento.

Por onde a lembrança encarnecida
pairou para viver ferida em pensamento.
A ânsia agoniza no esparso sofrimento.
Morrer e nada ter...
Apenas a distância da jornada
desencarnada pela permanência
da liberdade de voar...

Tendência de recriar na vida
um longo caminho perfeito
que se torna uma linha rompida,
um ninho desfeito...
Fantasia de gerações...
Poesia de ocasiões...

Tudo planejado para no dia previsto ressurgir...
Marcado pelo passado, desatino da razão.
Tudo antes pensado para um breve destino
entre infinitos que estão por vir.
Durante a noite, quantas vezes,
terei de abrir os olhos para sentir
que ainda não consegui dormir?

Sandro Gonzaga

Renome

Seu nome é sem nome.
Sem nome ou renome.
Com fome de nome.
Que consome, some.
Até que retorne e viva.
Sem nome.


Sebastiana de Lourdes

Apenas dentro de nós

Olhos da morte me espreitam pelas sombras,
Escondidas em vielas que o tempo apagou.
Reluzem como diamantes num manto de desprezo,
No Éden dos mal-amados,
Dos mal-nascidos,
Dos mal-sucedidos,
Dos mal-alimentados,
Dos mal-me-queres,
Dos males não-exorcizados,
Das más lembranças de ódio de um tempo
onde o mal reina absoluto.

Sempre como os coadjuvantes tristes,
Palhaços tristes, nunca dignos de se comentar.
Nos olhos, feridas abertas,
Chagas incuradas, dores expostas,
Pichadas e irretocadas
Na muralha do esquecimento.

É como o fogo que brilha, mas não queima.
São como os dias que apenas se sobrevivem.
É como a deixa silenciada por um vazio ecoante.
É como o tempo invisível, mas tão marcante.

Sempre ali, tão nítidos, mas tão despercebidos...
Já não sabendo o que é mais sentir...
Vidas infecundas, banhadas por um rio:
Sem correnteza, sem nascente ou foz.
Onde as turvas curvas do caminho,
Confundem-se com o horizonte negro ali distante.
Onde a alvorada dos dias
Permanece como lembrança ainda não-vivida,
Como sonhos ainda não-despertados,
Como a chuva ainda não-caída,
Como o passo ainda não-dado.

Nunca é tarde para amanhecer,
Pois o sol sempre permanece vivo,
Apenas escondido,
Apenas invisível,
Apenas dentro de nós.

Thiago Albert

Quarta-Feira de cinza

A troça desceu a rua.
Levou toda felicidade.
Deixando uma verdade nua.
E num espelho quebrado, a saudade.

O sentimento frio da solidão.
As trevas que atravessam o caminho.
O ato de pensar em vão.
E o primeiro pulo do ninho.

Vidal de Sousa

Embrasse moi

Como era de se esperar, o garçom olhou já irritado. Tudo bem que o emaranhado de tormentos da rotina de sua profissão contribuísse, mas era fato: aquela cena o irritava. Aquele homem sentar ali no mesmo canto de sempre. Embrasse moi, por favor. Não, por incrível que pareça, os fregueses não lhe pediam para que os beijasse. O termo francês era nome para uma das mais deliciosas sobremesas do local. Claro que quando veio trabalhar ali achava estranho, especialmente quando tinha que atender homens. Quando era a vez das mulheres compensava, mas isso não vem ao caso; a sobremesa vem. E, principalmente, a irritação do garçom ao ver aquele pobre coitado pedir embrasse moi, faça chuva ou sol diante das leves luzes avermelhadas do local, diante dos gatos pingados – aquele homem sempre aparecia quando estava perto de fechar, para desespero de nosso atendente. E ele se sentou mais uma vez, olhou para um lado e para outro, baixou a cabeça, fez sinal com a mão. Logo, seguiu-se o pois não.

- Um embrasse moi, por favor.

Pensou em interagir, mas logo calou os pensamentos. O homem, por sua vez, logo exigiu bastante calda de chocolate. Do jeito de sempre, certo? O garçom fez que sim com a cabeça e saiu, ainda com cara de pena. O rapaz parecia ansioso, como sempre. Batucava para si no canto da mesa, ouvia o som leve do jazz, tudo combinava com as impressões do garçom, compondo um agridoce ímpar; tudo combinava com as impressões do homem, compondo um dulçor melodioso.

- Embrasse moi! – gritou para a moça na cozinha, que prontamente disse logo preparar.

Um pouco estafado, sexta-feira, carga da semana acumulada nas costas, o garçom deixa pender as pálpebras. Pensa meio amargo nesse cansaço, pensa que não dá pra jogar tudo para o alto por causa de cenas deploráveis como aquela que vinha se repetindo por aqueles dias. Cá entre nós, o problema do garçom era exatamente o que teríamos como qualidade: era humano. Muitos nem sequer dariam a mínima para aquilo. Locais de luxo como o que ele trabalhava estão acostumados a desvios, desencontros, contrastes, crises. Um rapaz qualquer se preocuparia em servi-lo e depois esperar o fim do expediente para seguir com o cotidiano pesado do proletariado. Não sei se era pelas doses cavalares de piano e saxofone nos ouvidos a noite toda ou se pelo misterioso sabor da sobremesa mais vendida, especialidade da casa, mas o garçom realmente ficava incomodado em ver o homem puxar a cadeira, pedir algo e começar com aquele discurso choroso. Como vai você? Dormiu bem? Sonhei com você ontem, tá difícil te esquecer, sabe?

***

Quando ela entrou, o embrasse moi ainda não estava servido. A pianista tinha saído do seu canto para tomar água e eu estava já ficando chateado com aquele garçom me olhando estranho. Ela, linda como sempre. Eu inconformado. Olhei-a sentar à mesa. O vestido longo de um escarlate requintado, um convite ao sabor da vida. Do que adianta ter dinheiro se você não tem ou sabe algo de bom pra fazer com ele? E, modéstia a parte, eu sabia. Bastava ver como todos me olhavam para ver o quanto me admiravam. Alice. Dama fina, discreta, uma pele de veludo, alva baunilha decorada em fios lisos de chocolate. Deve ser por isso que gosto tanto da especialidade da casa. Alice me olhava meio que cobrando ainda, mas não deixaria essa cobrança se estender; eu é que tinha que fazê-lo; Quando você volta?

Eu sabia que a pergunta a fazia chorar, mas era mais forte do que eu, eu tinha que perguntar como perguntava todos os dias que vinha vê-la aqui. A minha cara não era tão animada. Estava sempre naquela: ver o corpo leve e esbelto de Alice na minha frente, lembrar das noites em claro provando prazeres proibidos – eis algo bom no dinheiro. Você pode comprar o silêncio de quem quiser para que não cheguem notícias desagradáveis nos ouvidos da esposa. Eu sabia desde o começo que Alice se incomodava com isso. Cadê o embrasse moi que não chega? Ela nem um pio, olhava-me como quem pede explicações. Eu comecei. Meu amor, me desculpa, não queria que as coisas chegassem a esse ponto. Queria tocá-la, mas na mesma hora a vergonha me impedia. Desculpa, desculpa, mil desculpas. Sei que foi culpa minha as coisas terem chegado a esse ponto. A lágrima escapou de um dos olhos, me pareceu que Alice segurava o choro, prendendo-se num orgulho indecifrável em ter feito o que fez. Até acho ainda que você exagerou meu amor, mas não precisava, eu ia ficar com você! Eu ia largar a minha esposa! Eu ia, juro que eu ia! O que que aquele garçom tanto olha para cá? Não tem mais ninguém pra aporrinhar, não? Não queria escândalos, se bem que podia pagar qualquer prejuízo. Você sempre com essa mania de querer comprar o mundo, dizia. Eu quero o seu amor, não o dinheiro! Sempre que Alice me vinha com isso eu me sentia mais atraído por ela, mais aquele poço de luxúria me parecia sagrado, não sei explicar direito... Arrependo-me de as coisas terem acabado assim. Quando você volta? Nenhuma resposta. Um silêncio em nossas mesas, embalado pelo barulho do arredor, da pianista que retornava. Meus olhos se enchendo, eu nervoso. Por favor, volta... Por favor, por favor! Eu te amo! Vocês estão olhando o quê? Esse pessoal me chateia muito. Continua tocando, porra! Um beijo, por favor. Eu sei que tudo teria sido diferente se eu não tivesse mentido, te enganado prometendo o mundo sem me desfazer desse meu mundo chato. Eu me odeio por te perder! Odeio. Meu Deus! Diz que volta por fa...

- Senhor!

Garçom chato! O que quer, não vê que essa conversa é de vida ou morte?

- Perdoe-me, senhor. Seu embrasse moi.

***

O garçom bem que quis segurar, e segurou mesmo, pois o que queria era por o ódio que sentia daquele senhor cheio de soberba para fora. Pensou no emprego. Arrumar um legal tá difícil, melhor eu baixar a bola. Entregou a sobremesa e saiu devagar para o canto do balcão. Metade do caminho se passou e ele parou, meio que pensando se realmente aquilo era certo. Não, não era certo se meter na vida dos clientes, mas também sabia que aquela tenra moça não merecia ter passado por tudo daqueles meses. E, contudo, o playboy mimado de meia idade também não merecia aquela vergonha toda; deveria aprender a crescer e seguir em frente. Acabou – da pior maneira, mas acabou. Se fosse eu no lugar dele? Provavelmente se fosse o garçom ali não sofreria tanto, pois tem sofrimentos de maior urgência na vida, supomos. Como é bem intrometido e coração mole mesmo, não tinha jeito, deu meia volta e andou em direção ao homem. Este já chorava à mesa, nem tocou no sorvete, e não era por causa do frio. Nunca se importava com o frio. Toda noite era mesma coisa, desde que terminou com Alice. Não faça isso! Não incomode os clientes, gritaram lá do balcão, mas sem sucesso. Olhou bem a face do pobre homem. Cutucou-lhe o ombro:

- Senhor!

***

Alice, só preciso de uma chance pra provar que posso mudar. Estou arrependido. Senhor! Por favor, você tem que me deixar tentar! Senhor, por favor! Me responde! Veio aqui só para olhar para minha cara mais uma vez? Senhor, ela... Alice, me beija! Me diz que ainda tem jeito! Senhor! Me beija! Me beija! Me beija! Senhor, pare de gritar! Não enche!

- Cala a boca e me ouve, porra!

Piano e sax pararam, os gatos pingados paralisaram, o balcão cabisbaixo prevendo o escândalo após o grito do garçom. O homem meio que soluçando olhou fundo nos olhos do jovem, tal uma criança aturdida. Hã? Senhor, a senhorita Alice, sua companhia, ela não está aqui. Quê? Mas... Desculpe, senhor, mas não se lembra do acontecido? Hoje já faz seis dias, a missa é amanhã, inclusive.

- Quê? Eu... Alice... Eu...

O garçom abraçou o homem, puxou-o da cadeira. Não se preocupe, vá para casa. Volte assim que melhorar. Eu... Eu... Alice...

Alice...

O garçom o ajudou, ele ficou parado no canto do local alguns minutos, num agridoce indecifrável. Deixou o dinheiro sobre a mesa logo mais, saiu pela porta principal sem saber onde enfiar a cabeça. Logo em seguida, o garçom, já meio atordoado também, pediu dispensa. Preciso ir para casa, minha cabeça está estourando.
Sem muito que fazer perante o ocorrido o pessoal do balcão o dispensou. Deixe, falamos com o chefe. O garçom saiu, pensou até em sorrir, mas isso não foi possível. Um acidente na entrada do local, um carro se chocou contra um homem ou um homem se chocou com um carro, era o que diziam os curiosos. Foi bem na porta. A ambulância chegava quando ele permanecia encostado num poste, vendo o tumulto.


Wander Shirukaya

Incontestável

Ninguém me viu partir.
Ninguém me julgou bom ou ruim.
Eu simplesmente fui como quem deita para dormir.
E cheguei despreocupado
Pois não vi trevas nem pecados.
Nem anjos rebeldes,
Nem demônios transfigurados,
Era apenas eu
No inferno apenas meu
Onde o indulto era ser condenado
Fogo, lamúria, noite, dia,
Nada disso existia. Estava tudo
Do jeito que a incompreensão queria,
Tudo em formato de poesia.

Wendell Nascimento

ao Boi do Canavial


boi do canavial,16 de fevereiro de 2010

esse Boi é meu:
esse Boi é do povo
esse Boi é meu:
esse Boi é do povo

esse Boi é meu:
veio pra ficar
esse Boi é meu:
é do Canaviá

(Sérginho da Burra)

Primeiro, marca-se a data e a hora (geralmente um dia antes): Praça Treze de Maio aos primeiros traços de boêmia, nesta goianagonia.

Segundo, chegam todos atrasados, um a um faz-se a cotinha pra um vinhozinho (já que beber também é um ato sagrado assim como cantar, tocar, compor, etc...), esquenta-se os instrumentos, braços e haja brasa.

Terceiro, estamos pelas ruas desta Goiana “salvem-se quem puder”, ecoando passos e compassos, Alfáias fazendo forças quebrando um silêncio que fere, Caixas de apertadas esteiras anunciam cascatas de toadas, Agogô e Mineiro, um tanto quanto de lá Nação um tanto quanto de cá Rural, e nós, uma geografia inteira de subversivos. E esse Bombo Bumba Meu Boi, e esse tombo Bombo de Boi, e esse Boi que Bumba ano todo?...

Viva Viva Meu Boi, anuncia a fartura nessas várzeas de alegria, a terra fértil que é todo sorriso do povo e a repartida do eterno carnaval.
Viva Viva Meu Boi, meu Boi Bonito, Cara Preta, do Egito, meu Boi Português, Sertanejo, Brejeiro, do Piauí, Meu Boi do Canavial (um elefante quase Drummond).
Viva Viva Meu Boi, que roda-e-roda, corre atrás de criança, chega junto, pede afago e dança nesse carrossel que se torna as ruas na sua passagem.