19 fevereiro 2010

Embrasse moi

Como era de se esperar, o garçom olhou já irritado. Tudo bem que o emaranhado de tormentos da rotina de sua profissão contribuísse, mas era fato: aquela cena o irritava. Aquele homem sentar ali no mesmo canto de sempre. Embrasse moi, por favor. Não, por incrível que pareça, os fregueses não lhe pediam para que os beijasse. O termo francês era nome para uma das mais deliciosas sobremesas do local. Claro que quando veio trabalhar ali achava estranho, especialmente quando tinha que atender homens. Quando era a vez das mulheres compensava, mas isso não vem ao caso; a sobremesa vem. E, principalmente, a irritação do garçom ao ver aquele pobre coitado pedir embrasse moi, faça chuva ou sol diante das leves luzes avermelhadas do local, diante dos gatos pingados – aquele homem sempre aparecia quando estava perto de fechar, para desespero de nosso atendente. E ele se sentou mais uma vez, olhou para um lado e para outro, baixou a cabeça, fez sinal com a mão. Logo, seguiu-se o pois não.

- Um embrasse moi, por favor.

Pensou em interagir, mas logo calou os pensamentos. O homem, por sua vez, logo exigiu bastante calda de chocolate. Do jeito de sempre, certo? O garçom fez que sim com a cabeça e saiu, ainda com cara de pena. O rapaz parecia ansioso, como sempre. Batucava para si no canto da mesa, ouvia o som leve do jazz, tudo combinava com as impressões do garçom, compondo um agridoce ímpar; tudo combinava com as impressões do homem, compondo um dulçor melodioso.

- Embrasse moi! – gritou para a moça na cozinha, que prontamente disse logo preparar.

Um pouco estafado, sexta-feira, carga da semana acumulada nas costas, o garçom deixa pender as pálpebras. Pensa meio amargo nesse cansaço, pensa que não dá pra jogar tudo para o alto por causa de cenas deploráveis como aquela que vinha se repetindo por aqueles dias. Cá entre nós, o problema do garçom era exatamente o que teríamos como qualidade: era humano. Muitos nem sequer dariam a mínima para aquilo. Locais de luxo como o que ele trabalhava estão acostumados a desvios, desencontros, contrastes, crises. Um rapaz qualquer se preocuparia em servi-lo e depois esperar o fim do expediente para seguir com o cotidiano pesado do proletariado. Não sei se era pelas doses cavalares de piano e saxofone nos ouvidos a noite toda ou se pelo misterioso sabor da sobremesa mais vendida, especialidade da casa, mas o garçom realmente ficava incomodado em ver o homem puxar a cadeira, pedir algo e começar com aquele discurso choroso. Como vai você? Dormiu bem? Sonhei com você ontem, tá difícil te esquecer, sabe?

***

Quando ela entrou, o embrasse moi ainda não estava servido. A pianista tinha saído do seu canto para tomar água e eu estava já ficando chateado com aquele garçom me olhando estranho. Ela, linda como sempre. Eu inconformado. Olhei-a sentar à mesa. O vestido longo de um escarlate requintado, um convite ao sabor da vida. Do que adianta ter dinheiro se você não tem ou sabe algo de bom pra fazer com ele? E, modéstia a parte, eu sabia. Bastava ver como todos me olhavam para ver o quanto me admiravam. Alice. Dama fina, discreta, uma pele de veludo, alva baunilha decorada em fios lisos de chocolate. Deve ser por isso que gosto tanto da especialidade da casa. Alice me olhava meio que cobrando ainda, mas não deixaria essa cobrança se estender; eu é que tinha que fazê-lo; Quando você volta?

Eu sabia que a pergunta a fazia chorar, mas era mais forte do que eu, eu tinha que perguntar como perguntava todos os dias que vinha vê-la aqui. A minha cara não era tão animada. Estava sempre naquela: ver o corpo leve e esbelto de Alice na minha frente, lembrar das noites em claro provando prazeres proibidos – eis algo bom no dinheiro. Você pode comprar o silêncio de quem quiser para que não cheguem notícias desagradáveis nos ouvidos da esposa. Eu sabia desde o começo que Alice se incomodava com isso. Cadê o embrasse moi que não chega? Ela nem um pio, olhava-me como quem pede explicações. Eu comecei. Meu amor, me desculpa, não queria que as coisas chegassem a esse ponto. Queria tocá-la, mas na mesma hora a vergonha me impedia. Desculpa, desculpa, mil desculpas. Sei que foi culpa minha as coisas terem chegado a esse ponto. A lágrima escapou de um dos olhos, me pareceu que Alice segurava o choro, prendendo-se num orgulho indecifrável em ter feito o que fez. Até acho ainda que você exagerou meu amor, mas não precisava, eu ia ficar com você! Eu ia largar a minha esposa! Eu ia, juro que eu ia! O que que aquele garçom tanto olha para cá? Não tem mais ninguém pra aporrinhar, não? Não queria escândalos, se bem que podia pagar qualquer prejuízo. Você sempre com essa mania de querer comprar o mundo, dizia. Eu quero o seu amor, não o dinheiro! Sempre que Alice me vinha com isso eu me sentia mais atraído por ela, mais aquele poço de luxúria me parecia sagrado, não sei explicar direito... Arrependo-me de as coisas terem acabado assim. Quando você volta? Nenhuma resposta. Um silêncio em nossas mesas, embalado pelo barulho do arredor, da pianista que retornava. Meus olhos se enchendo, eu nervoso. Por favor, volta... Por favor, por favor! Eu te amo! Vocês estão olhando o quê? Esse pessoal me chateia muito. Continua tocando, porra! Um beijo, por favor. Eu sei que tudo teria sido diferente se eu não tivesse mentido, te enganado prometendo o mundo sem me desfazer desse meu mundo chato. Eu me odeio por te perder! Odeio. Meu Deus! Diz que volta por fa...

- Senhor!

Garçom chato! O que quer, não vê que essa conversa é de vida ou morte?

- Perdoe-me, senhor. Seu embrasse moi.

***

O garçom bem que quis segurar, e segurou mesmo, pois o que queria era por o ódio que sentia daquele senhor cheio de soberba para fora. Pensou no emprego. Arrumar um legal tá difícil, melhor eu baixar a bola. Entregou a sobremesa e saiu devagar para o canto do balcão. Metade do caminho se passou e ele parou, meio que pensando se realmente aquilo era certo. Não, não era certo se meter na vida dos clientes, mas também sabia que aquela tenra moça não merecia ter passado por tudo daqueles meses. E, contudo, o playboy mimado de meia idade também não merecia aquela vergonha toda; deveria aprender a crescer e seguir em frente. Acabou – da pior maneira, mas acabou. Se fosse eu no lugar dele? Provavelmente se fosse o garçom ali não sofreria tanto, pois tem sofrimentos de maior urgência na vida, supomos. Como é bem intrometido e coração mole mesmo, não tinha jeito, deu meia volta e andou em direção ao homem. Este já chorava à mesa, nem tocou no sorvete, e não era por causa do frio. Nunca se importava com o frio. Toda noite era mesma coisa, desde que terminou com Alice. Não faça isso! Não incomode os clientes, gritaram lá do balcão, mas sem sucesso. Olhou bem a face do pobre homem. Cutucou-lhe o ombro:

- Senhor!

***

Alice, só preciso de uma chance pra provar que posso mudar. Estou arrependido. Senhor! Por favor, você tem que me deixar tentar! Senhor, por favor! Me responde! Veio aqui só para olhar para minha cara mais uma vez? Senhor, ela... Alice, me beija! Me diz que ainda tem jeito! Senhor! Me beija! Me beija! Me beija! Senhor, pare de gritar! Não enche!

- Cala a boca e me ouve, porra!

Piano e sax pararam, os gatos pingados paralisaram, o balcão cabisbaixo prevendo o escândalo após o grito do garçom. O homem meio que soluçando olhou fundo nos olhos do jovem, tal uma criança aturdida. Hã? Senhor, a senhorita Alice, sua companhia, ela não está aqui. Quê? Mas... Desculpe, senhor, mas não se lembra do acontecido? Hoje já faz seis dias, a missa é amanhã, inclusive.

- Quê? Eu... Alice... Eu...

O garçom abraçou o homem, puxou-o da cadeira. Não se preocupe, vá para casa. Volte assim que melhorar. Eu... Eu... Alice...

Alice...

O garçom o ajudou, ele ficou parado no canto do local alguns minutos, num agridoce indecifrável. Deixou o dinheiro sobre a mesa logo mais, saiu pela porta principal sem saber onde enfiar a cabeça. Logo em seguida, o garçom, já meio atordoado também, pediu dispensa. Preciso ir para casa, minha cabeça está estourando.
Sem muito que fazer perante o ocorrido o pessoal do balcão o dispensou. Deixe, falamos com o chefe. O garçom saiu, pensou até em sorrir, mas isso não foi possível. Um acidente na entrada do local, um carro se chocou contra um homem ou um homem se chocou com um carro, era o que diziam os curiosos. Foi bem na porta. A ambulância chegava quando ele permanecia encostado num poste, vendo o tumulto.


Wander Shirukaya

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