25 agosto 2008

Erros e arrependimentos

Chega! É hoje! Sem muito luxo, arrumou-se. Prendeu os cabelos – se não fosse pelas tinturas da vida eles já estariam um pouco prateados. Deixa pra lá. Nunca parecia ter a idade que tem. Quanto? Não se pergunta a idade de uma dama, muito menos se ela for comprometida. Quê? Comprometida, pelo menos se tudo der certo. É hoje!
Depois de uma bela caminhada, chega. Chega desvairada. Chega! Coração na lágrima, lágrima na mão, a tarde iluminada, propícia para o ato. Quer saber o que eu vim fazer? Olho carregado, verde, fixo, senta junto dele, puxa da bolsa o prêmio. Ele paralisado. Sei que não devia fazer isso, mas por todos estes anos eu carreguei isso em mim. Isso o quê? Culpa, angústia, pesar mais pesado a cada segundo, a cada fração passada ao passar dos seus passos frente a minha casa. Eu nervosa. Será que estou mesmo dizendo essas coisas? Dói. Mas é preciso, porque quando eu te via eu me agüentava, mas ver o que tenho aqui não me deixa em paz. E eu caio. Caí. Hoje mais do que nunca.
Sempre se cruzavam à distância; é a primeira vez em anos tão próximos. Chega o peito pulula, pula empurrando o coração pro céu, junto ao sem número de ações misturadas, buscando um fim onde o amarelo sorriso se abrisse. Ferver, tremer, olhar, arfar. Fugir? Parar, pensar, respirar, prosseguir, falar, tremer, gaguejar, mostrar, parar, esquecer, chorar, querer morrer, desejar, acalmar, acordar, ignorar, mostrar.
É isso, mostrar.
Era um retrato lindo. A moldura estava muito carcomida, a foto num misto de sépia e ocre, sei lá. Minha vista dói. A cabeça dela doía. Ânimo! Lembra? Não lembrava. Uma palavra pra confirmar, apenas? Ele não quer me falar. Olha, eu sei que o que eu fiz foi sem perdão. Essa foto é hoje a nossa única lembrança. A Julinha tinha morrido, nem quis dizer da existência dela para ele, a raiva não deixava. Castigo, esse aborto, só pode ser. Mas ele soube, por terceiros, nunca disse nada, nem na frieza de agora. Alguém de longe vê, estranha a aflição da mulher. Deus me livre de me meter nessas coisas! Chora. Tinha tudo, mas por um erro tudo foi por água abaixo. Os pássaros cantam aos arredores, quem sabe para desentalar a pobre, engasgada nas ações possíveis: Lamentar, chorar, desculpar-se, implorar, sussurrar, se surrar, rever, reviver, remoer, sofrer, entender, partir. Partir? Redargüir, discernir, distinguir, diferir-se, cingir, impor, antepor, por tudo quanto é ação para fora, pra ver se a indiferença passa, a passos menos compassados, se a passividade dele pára. Não vai. A quem eu quero enganar? Ele não quer me responder, nem com um gesto, um olhar, está irredutível. É o fim, conforme-se.
Chega! Tarde demais! Estava arrebentando por dentro de amargura, de arrependimentos, afogada no choro interno. Grito. Grita. Por que nossas vidas tomaram esse rumo? Por um erro apenas meu mundo esses anos todos foi te ver passar longe, ignorando. Por deus, até a filha que vinha você ignorou! Mesmo assim, mesmo nesse eterno nó em que vivia ela ainda o amava. Adeus. Que bobagem a dela; ele nunca se importara, não ia ser agora depois de tantos anos que o faria. Com os gritos, os pássaros se assustaram, deixaram pra lá a paisagem verdejante e ensolarada. Alguém resolve intervir. O coveiro veio num ato de pura gentileza. Você está atrapalhando meu trabalho, dona. Caiu. Em si. Ela deixou o retrato entre os cravos, levantou-se da lápide, as mãos marcadas de tanto esmurrar. Foi puxada, foi embora. Eu te amo, eu te amo, eu te amo.

Wander Shirukaya

Às teclas pretas do piano.

Que bonitinha, não é? Os comentários escorriam da sala para o quarto, enquanto os longos cabelos eram presos com um laço discreto ao extremo. Em cada minúcia se sentiria a perfeição no preparo, tal como aquelas atrizes que estão prestes a entrar para a cerimônia de premiação. A saia, pronta para cumprir o dever, apertou a cintura, olhou para o espelho, do reflexo via a franja esconder-se às orelhas, o brilho dos lábios diminuindo, o dos olhos tentando aumentar. A luz foi apagada, deixou a menina correr para brilhar.
A família sentava confortavelmente, a tia batia discreta na mão do filho que arranhava o assento. Jacarandá-da-bahia, lindo, dava dó de sentar. O ambiente era bastante descontraído, muito agradável, uma cama acolhedora de sensações. Cecília, mãe dedicada, esforçava-se ao máximo para não escancarar a satisfação. No centro da sala, o piano. Antigo, mas como todo vintage que se preze, inesquecível a qualquer olho que o debruce. Eis que todos vêem a menina dos olhos chegando absorta, contemplando todo espírito do local. Na sala a cara de tia da tias, o pirralho tentando riscar o móvel, a mãe no tino de sempre, aguardando o sublime espetáculo. Vê que linda é minha filha? Precisa ver como toca, um anjo só! Linda mesmo a sua filha. Mãe, posso ir no banheiro? Que menino chato! Espera terminar a apresentação da sua prima! Faltou organizar a iluminação, mas os presentes não ousavam se queixar. Era só um detalhe perto da luz que logo encheria a saleta. Glória a Deus, todo poderoso, por me dar a dádiva de ter filha tão... Tão...
Dava pra sentir no último fio de cabelo a tranqüilidade com que a garota alongava os dedos, fitando as teclas do piano. Estas, por sua vez, choravam, criavam infindáveis marolas com as lágrimas. Marolas de um pesar que alegrava. Que canção linda! A tia só seguia as palavras de Cecília, que bem sabia quão bela era a tragédia. Dó menor. E a frieza que a música exigia exalava da garota. Uma frieza compassada, respirada em cada intervalo, causando calafrios na platéia, quase nenhum erro.
Quase.
No meio de um trecho tão complexo era de se perdoar que uma nota saísse lugar, ainda mais sem a partitura para a ajuda. A mãe parece ter sido a única a notar, fez meio que um aplauso forçado para disfarçar. Bravo, minha filha! Excelente! A tia aplaudiu em seguida, enquanto o menino fugiu sem ser notado, em busca da felicidade. Os olhos de Cecília, nadando entre marolas sutis como as teclas, orgulhavam-se, enquanto os dedos da menininha concentrados despencavam sobre o piano.
Chega um trecho alegre, bem mais difícil, conduzindo as emoções dos ouvintes. A cara de tia agora era de fã incondicional. Bravo! Esta menina é maravilhosa! Não sabia de nada, mas o entusiasmo contido de Cecília merecia ser manifestado, nem se tivesse que ser por outra pessoa. E descem e sobem escalas com uma desenvoltura assombrosa, quase não se vê o rosto da pianista, debruçada sobre o piano para não perder a concentração, tão grande essa que fazia sorrir às teclas, ao menos às brancas. A mãe rezava baixinho em agradecimento e proteção, especialmente enquanto a canção entrava na parte mais difícil, onde tinha de imbuir-se de um ódio que fervilhasse para culminar nos taciturnos interlúdios do começo, encerrando sua representação. Torço por você, minha filha.
As teclas, felizes, cantarolavam veloz uma melodia que deixava a todos sem ação, criava uma catatonia, uma catarse interna, um infinito de apenas 13 segundos. Eis então o tropeço. Visível. Audível. Perdoável. Com desenvoltura, o mais rápido possível, a canção foi retomada, uma bela frase encerrou a obra de arte. A mãe aplaude, menos contida que anteriormente, com lágrimas nos olhos. A tia segue os passos, eufórica ajoelha seus aplausos em reverencia à apresentação, apesar do pequeno lapso. Tudo acaba bem, o pirralho volta para a sala e pergunta do lanche, dando os parabéns à prima. A menina via os olhos de todos. Felizes. Todos se dirigiam para a cozinha. Cecília aplaudia já comedida, olhava fixamente a filha. A mocinha agradecia com um sorriso, enquanto fitava os olhos da mãe; olhos de palmatória.


[Wander Shirukaya]

Tabaco em Pílula,

Tabaco em Pílula,
ou ao Heterônimo de Fernando Pessoa que me foge agora(quem mandou ser gênio com distúrbio de personalidade?!!),
ou placa de chocolate,
ou Minha Felicidade Lavadeira,
ou Troco na Algibeira,
ou ainda Sonho Morto.

(vitorino da silva)

Nesse mundo de mágoa
meu verso não vale nada
porque sou um bosta n'água
(e a tabacaria agora
só vende chocolates)

Castanhos

Olhos,
Paisagem na cama...
Íris de cortinas castanhas
Balançam por cristalinos abertos.
Brisa, retina, início de manhã.
Olhos que carregam segredos
De danças sobre escombros.

Philippe Wollney

Metástase

Te descubro pelo avesso.
Nas partes mais profundas e ocultas,
Sempre consumimos alguém.

Philippe Wollney

Caixinha de papel

Guardo um amor mofado
Dentro de um coração
Feito de origami.

Philippe Wollney

Cogumelo.

Ama Anita eu.

Philippe Wollney

Andrógino

A mar
O mar

Philippe Wollney

Poemas não são livres

Queria um poema
Que fosse livre.
Quis bancar mágico menestrel
Coloquei a palavras ASA
Disse-lhe: - ALCE VÔO
Mas não desgrudou do papel.

Philippe Wollney

Daqui a pouco

Sinto que a morte
Me olha.
Me olha com sede
Me olha diferente.
Preciso ser menos inconseqüente.
Senão ela vai me levar.
Esse calafrio
Esses dias passando devagar
Pode ser meu fim
Ou o momento, o instante
Que tenho, que preciso
Para me eternizar, para ser feliz.
Sinto que a morte
Me olha
Me olha com carinho
Me olha com tristeza
Esperando qualquer deslize
Qualquer vacilo que seja,
Preciso ser menos inconseqüente senão ela me leva.
Me leva!
Me leva!
Ela ama o meu cheiro e
Eu sei que ela me quer
Meus passos
Meus pêlos
Ela me segue
Ela me provoca
Ela me instiga
E me sufoca
Me prende e
Me solta
Parece poesia
Mas todo dia
Sinto que a morte
Me olha!
Me leva!

Wendell Nascimento

Pena.

Pena mortal.

Pena voadora.

Pena para cumprir.

Pena que você não sentiu
que quanto mais o tempo passa
menos tempo temos.

Sandro Gonzaga

De hora em hora

Tudo pode acontecer
Em um instante
Num piscar de olhos.

De hora em hora
A porta abre,
A janela fecha,
A luz se apaga.

De hora em hora
O ventilador gira,
Sopra
E refresca.

De hora em hora
O sino bate-bate
Na casa de meu pai
Chamando-nos para a missa.

De hora em hora
O sol desaparece
A nuvem passa
E a chuva cai.

De hora em hora
As flores nascem
Murcham
E morrem.

De hora em hora
O tempo passa
As folhas caem
A terra gira.

De hora em hora
A perna estica
A boca treme
O peito palpita.

De hora em hora
Os peixes nadam
As ondas batem
As areias espalham-se.

De hora em hora
Uma gota cai
São olhos desabando
Em lágrimas.

De hora em hora
As letras se encaixam
Formando palavras
Elaborando um texto.

De hora em hora
Tudo se troca
Vem um sorriso
No lugar do choro
E um choro
no lugar do riso.

De hora em hora
O corpo acorda
Dorme
Anda
E fala.

De hora em hora
Ela nasce
Vive
Morre
E por um fato oculto
Renasce
E logo morre.

Mas de hora em hora
Tudo se repete
E o nada se transforma.

Pollyanna Gomes

INCENDIÁRIOS

Ardendo em flama, saí pelas ruas da cidade. – como as pessoas são fáceis de incendiar. Em abraços ígneos os pedestres se contaminavam com o estado da euforia, sentiram-se ionizados após anos e anos de broxura. Da Subestação à Rua do Lindo Amor as pessoas trepavam sem pudor, deixaram as roupas em brasa, nas portas das casas, calçadas, cantos de muros. Atearam fogo nas praças e em todos os lugares surgiram sagradas sarças com belotas intocadas. E uma multidão em sorriso e chama, caminhava em direção à prefeitura, Rua Marechal Deodoro... da direita para a esquerda ouvia-se fagulhas, queimaduras bradadas. O prefeito com seus secretários se trancaram no banheiro, todos embaixo do chuveiro não suportavam a idéia de terem as gravatas queimadas.

As crianças brincavam incendiando o canavial de mãos dadas.

Philippe Wollney

Abril

Neste primeiro dia do mês
Vou passando o tempo
Como quem passa a roupa
Apenas por obrigação.

Escutando músicas apocalypticas
Nesta cama velha e dantes encharcada
Pelas lágrimas que derramei ontem
Lágrimas que chorei calada.

O vento artificial que balança os meus cabelos
Alivia o calor do meu corpo
Mas e o ardor da minha alma
Quem irá aliviar???

Ah, primeira tarde de abril
Tão parada e normal
Pareces com aquelas tardes
De todos os meses do ano.

Mayra Le Fay

Poética (III)

Numa paixão
Evoco
Verbo
Vejo
Verso

Marcelo Arruda

MAGOS POETAS - a todos os piratas

No papel
há de se transcender
palavras
por arte
por força maior
de mãos
que empurram penas
que obedecem apenas
a ordem da criação.

José Torres
( verso avesso / 1987)

a grande casa

as brechas na porta
linhas dos intervalos da cerâmica
caminho no corredor – metade luz metade sombra
porta trancada
ninguém com força para abrir
na verdade, das poucas vezes que havia realmente alguém aqui.

a casa é muito grande quando as grades passam a delimitar a não vontade da realização de qualquer possibilidade

música pela casa
sem palavras
sem vozes
sem gemidos.

Carol Vitall

O quadro

Pinceladas e tonalidades de cores
Que deu a vida a uma flor
Eis que o diga, feitas com as minhas mãos
puras.

Só quem recebe, é alguém pura de coração.
Mas ela não me correspondeu
Mesmo assim te esperei sem desespero
E sem desgosto.

Deve-me ter enganado imaginaria que
Fosse a escolhida para a vida do meu
Quadro.

Ademauro Coutinho

22 agosto 2008

RETIRADA

Retire-se do meu caminho, do emaranhado dos meus cabelos, de todas as minhas verdades.
Vá embora do meu cheiro, dos meus dedos, dos meus poros das minhas saudades.
Retire suas mentiras, o seu personagem da minha realidade, os seus santos das minhas preces.
Vá embora da fumaça dos meus incensos, do sabor do meu chiclete.
Retire-se das minhas cicatrizes, absorva a dor da minha ferida, e perca-me quando não lhe for querida.
Retire-se dos meus pés, das minhas meias, das minhas horas, da minha fidelidade.
Retire-se da minha idade, do meu universo, da minha universidade.
Retire-se da minha moralidade, da minha rua, da minha cidade.
Retire-se da minha metade, e de tudo, porque em tudo está você, e até anoitecer retire-se do meu amanhã.
Porque amanhã bem cedo eu terei despertado.

Suely S. Araujo

PELA JANELA

As luzes da cidade morrem de fome quando não brilhas, quando não vens na linha da minha janela.
A noite pra mim é sempre tarde. E é quando o meu dia começa, nesse cotidiano revirado de ponta cabeça.
Quando o mundo acabar eu não saberei, porque as coisas acontecem à luz do dia.
Apenas vou sentir a noite mais fria.
Apenas vou olhar a noite mais escura e sentir falta da companhia das estrelas e da lua sobre o meu quintal.
Quando você se der conta, eu ainda estarei lá, não fui como todos.
Por trás dos seus olhos sempre haverá verdade pra mim, mesmo que você não queira.
Porque, independente da sua vontade, sempre foi assim.
Não tenho você nas minhas madrugadas enquanto você ficava acordado comigo.
Mas, você não me tem em suas madrugadas, nem em seus dias, enquanto durmo.
Não me telefone, porque não desejo sua voz.
Não exista, porque não lhe serve existência se não lhe toco.
Você não serve pra mim, mas não se odeie por isso.
As luzes da cidade é que sempre brilharam sobre o seu vulto fosco.
Apenas sinta a noite mais fria.

Suely S. Araujo

Coma-me

Coma-me pelos meus pés, pelos meus anos, pelos meus pêlos e por meus enganos.
Coma-me por entre os dentes, pelos meus poros mais profanos, pelos medos, pelos talheres e charutos cubanos.
Pela fumaça da desgraça, pelo incêndio dos meus desejos, pelas ruas ou calçadas, coma-me por entre seus beijos.
Coma-me pelos lençóis entre sua fome, enquanto lhe permito provocar meu próprio grito, apenas coma-me.
Além dos seus olhares, dos seus tocares, dos seus beijares, coma-me com a sua capacidade de ser meu homem.
Coma-me pelo corredor, pelo fogão, sem deixar farelos de amor ou qualquer sobra pelo chão. Coma-me depois de comer, depois de beber, depois da digestão.
Depois de fazer amor, depois de me lamber, coma-me com o seu querer.
Enquanto houver minha vontade coma-me com voracidade.
Enquanto não lhe vomito, coma o meu espírito.
Coma-me coberto ou despido, coma o meu corpo e o meu vestido.
Depois de respirar, mastigue-me um pouco mais.
Depois de me engolir, coma-me sempre mais.
Seja faminto de mim, de um estômago sem fim.
Coma-me qualquer parte, de qualquer jeito, barriga, orelha ou peito.
Meu pescoço, meus ombros, minha feiúra, minha beleza.
Coma-me antes e depois da sobremesa.
Coma-me sobre a cama, devore-me na mesa.
Minhas unhas, minhas pernas, meu queixo, meu umbigo, coma o meu eu que lhe deixo mais faminto comigo.
Coma os meus créditos, meus saldos positivos, meus neurônios, meus dispositivos.
Minhas sandálias vermelhas, meu batom garoto, e meu batom,
em mim tudo o que houver de bom.
Coma os peixes do meu signo, meu penar, meu designo, o avião da minha boa surpresa, a velocidade da minha natureza.
Mastigue o meu punho, minhas veias azuladas, meus ossos, minhas almofadas, meus ouvidos, meu carpete, meu absorvente, meu cotonete.
O sal da minha doce pele, o mel que eu lhe revele, o que me houver de esculpido, coma o meu salto pisado e cuspido.
Coma-me disciplinadamente, com o equilíbrio de um delinquente, coma o juízo de minha cabeça, os meus cabelos em meu pente.
Devore em mim cada parte, coma o meu mundo, Vênus ou Marte.
Meu planeta em seus gametas, meu céu azul ou vermelho,
meu coração aos cacos, e o vidro do meu espelho.
Mastigue o meu raciocínio com algum derivado de laticínio, minha carteira de identidade com a santíssima trindade.
Coma-me de frente e de costas, com flores e velas postas.
Em corpo presente, em alma, em mente, devore-me cheio de gana e desejo eloqüente.
Uma mordida seguida de beijo, com sabor goiabada com queijo.
Eu, Romeu e Julieta comidos, em cada trovão ou relampejo.
Na loucura de um doido varrido, numa procissão ou num cortejo.
Coma-me nesta rua, na UTI, no Hospital das Clínicas, nas dores sem remédio.
Num precipício, num hospício, na sacada de um prédio.
Coma-me sofrido, entorpecido ou gótico,
em seu estado mais crítico, no seu gesto mais erótico.
Coma-me temperada com orquídea, na TV ou qualquer mídia, num protesto, ou manifesto sem nome, enquanto me manifesto em sua fome.
Devore o meu tesão, minha carne, minha história.
Mastigue o meu corpo e engula a minha memória.

Suely S. Araujo

08 agosto 2008

Indissolúveis e Indistintos donos de mim

Esses versos assexuados,
Voluptuosos, póstumos,
Porventura são meus indômitos versos incógnitos,
Inatos.
Ora voláteis,
Ora incessantes,
Ora efêmeros,
Ora perenes.

Esses versos desatinados,
Despretensiosos e sucintos
Que gorjeiam fulminantes
Extasiando outros versos,
Indubitavelmente,
São meus irrevogáveis, lacônicos e latentes
Versos lúbricos.

Esses versos plausíveis,
Rutilantes e taciturnos
Que me ladeiam,
Exalam mistérios inimitáveis
Dogmas inolvidáveis
E pecados inócuos.

Todos estes versos são donos de mim.

Wendell Nascimento

Onde estão estes versos

Onde estão estes versos
Que clamam pelo infinito,
Limite de meu desespero?

Onde andará tudo que sonhei,
Esperei?

Como a criança buscando o pôr-do-sol
Que luta contra a tempestade de nuvens negras do horizonte.
Como esses muros que mutilam a Terra,
Fincando suas raízes parasitas no seio de algo que um dia já houve vida.
Como essas luzes que ofuscam meus olhos
E que me privam de contar o incontável.
Como essa fumaça jogada em meu rosto,
Que decepa meus sentidos,
Quase mortos pelas circunstâncias.

Hoje clamo por mim mesmo,
Pela vida, pela morte.

Já não sonho,
Não mais preciso.
Tenho jogado em minha cara
E exilado de meu espírito,
O mais singelo dos demônios adormecidos:

Liberdade!
Liberdade!
Liberdade!

Thiago Albert

Esta Noite

Ofereço-lhe as estrelas desta noite, todas que mais brilharem, as que mais se destacarem...
Ofereço-lhe também aquelas mais discretas e esquecidas, as mais longínqüas que ainda possuem algum brilho fosco, mas onde ainda há beleza.
Ofereço a você a chuva, se chover esta noite...
Ofereço o cheiro do barro, da terra molhada, porque a nós agrada este cheiro, como a mim agrada a sua essência.
Ofereço o reviver dos nossos melhores dias, a primeira noite na sua companhia, o silêncio do mundo e a nossa cor favorita.
Ofereço a você os gritos das corujas que passarem sobre o meu quintal, as estrelas caindo são suas...
Ofereço-lhe o sereno, o orvalho, a nudez celestial, a atmosfera que a mim não pertence, a mais bela canção, o mais gostoso sabor...
Ofereço-lhe a nitidez sem seus óculos, a satisfação sem o seu vício, a maresia à margem da sua cama, a lua cheia em seu quarto...
Ofereço-lhe tudo esta noite meu amor, ainda que eu não possua... Porque minha saudade me faz viver por entre as migalhas de tudo o que poderia ser tão intenso com a sua presença.

Suely S Araújo

Insistente esperança.

Depois dum pesadelo,
acordei e percebi que era:
o vulto da sombra que passa distante,
a vanguarda que morre para glória dos que “nada fazem”,
o corte profundo que não deixa o sangue estancar,
a inocência perdida da criança,
as cinzas de quem não morreu,
o desespero da sede e da fome,
as lágrimas da vida mergulhada em trevas abismais...
E só não me mato porque
ainda tenho a esperança de viver bem algum dia.

Sandro Gonzaga

Lamento

E se isso fosse verdade?
Teu semblante exposto
A mim
De uma forma única
Exuberantemente lindo
Com um olhar
Tímido e veloz.

E se a cada momento,
A cada instante
Lembrássemos
O quanto foi bom
Termos um ao outro.
Você choraria.
E eu?
Lamentar-me-ia.
Por não te ter mais aqui
Tão presente
Quanto este sangue
Que ronda minhas veias.

E o destino?
Aonde esse tocou,
Mudou.
Hoje somos nós dois
Com rumos distintos.

Como é que eu posso ser feliz?
Se a nossa felicidade se foi
Desde o dia
Em que você saiu
E não mais retornou.

Pollyanna Gomes

Estética de detritos

Estética de detritos

Sempre encarando o oposto.
Rígido, sem nome.
Com os rins, fígado, baço
Embebidos em formolítico.
Um coração gelado não palpita, não ama.
Seu último protesto-serventia
Manequim à medicina em
Estética de detritos.

Philippe Wollney

A vida

Era uma vez...

...no Escuro
Sozinha
Enfim
o Desespero
-O que está havendo? Parece que vou morrer. Isso aqui me sufoca. Acho que estou sem ar. Acho que vou desmaiar. Socorro, tirem-me daqui...

E depois de algum tempo...

...no Desespero
Esperança
Enfim
a Liberdade
-Oh, Deus, vejo luz. Poderei finalmente respirar aliviada. Mas, por que é tão difícil sair daqui? Ninguém vem me ajudar? O que estão esperando?...

Finalmente depois de muito sol e chuva...

...na Liberdade
Coragem
Enfim
O Júbilo
-Irei sair daqui! Nem que para isso tenha que voar!

E então a crisálida se rompe, revelando uma linda borboleta.

Fim?

Mayra Le Fay

Cidadão Zé

Estou aqui
Há quatrocentos anos
Cortando a cana
Que nunca foi minha
Faz quatro séculos
Que rezo um credo
Que não entendo
E não acredito

A vida inteira
Fui filho da puta
Meu pai navega
Em mares mais amenos
Minha mãe tem tetas
Fartas e distantes
Que não alcançam
Seus filhos pequenos.

Marcelo Arruda

Roda a dor

-------a dor roda
Roda--------roda
-------a dor
E sempre acaba em mim.

Marcelly Vidal

Vontade

Eu quero ver o mar
Quero sentir sua maresia, seu sal...
Seu cheiro de dia, azul-céu, azul-mar, azul-sol.
Sentir o vento bater nas orelhas,
Sentar na areia e perder a hora.
Perder a hora!
A hora.
Eu quero ver o mar e sentir um alívio,
Quero mirar seu horizonte.
Eu quero ver o mar ontem.

Cristina Souza

cavalos selvagens

cavalos selvagens

dentro de mim
cavalos selvagens.
perscrutando pela linha do horizonte.
senti muito claramente
uma falta de uma coisa qualquer que seja.
uma necromancia mórbida.
um sadismo latente.
os cavalos selvagens correndo.
não serão impedidos
por nenhuma força da natureza.

Carol Vitall

Xêpa

Na manhã de todo sábado
Muita gente se reúne
Para vender farinha de saco,
Feijão verde e até estrume

Dona de casa acorda cedo
E na feira vai comprar
Amendoim e rapadura
Pro marido lhe agüentar

O boêmio lá na rua
Amanheceu à noite brincando
E para se despedir da lua
A cabeça de galo foi tomando

Um menino bem buchudo
Acordou junto com o galo
Pegou o carro de mão
Que enche sua mão de calo

E na feira vai brigar
No grito ou na tapa
- Ô madame vamu levá?
Comigo é quase degraça.

E lá no fim da tarde
O menino vai para casa
Leva no bolso dinheiro
E no carro a feira rejeitada.

Caio Dornelas

RAÍZES SANGRIAS

"Floresta negra
de folhas mortas
solo vermelho
céu de nuvens amorfas...

Ouço seu chamado
entre raízes mortas
entre covas e abismos
na escuridão que me atraí...

E no escuro
sou guiada por sua voz distante
e as raízes me levam
do lugar onde pertenço

Raízes minhas
de meus cabelos
Raízes minhas
dos meus pesadelos

O sangue tinge o solo
gotas tintas fluem dos meus olhos
na floresta da escuridão
minha alma se torna sangrenta

Sangrenta e enraizada
imortalizada de onde jamais sairei
raízes minhas
raízes de reino que jamais deixarei..."

Agnes Mirra

Estrela cadente

Estrela ao cair no fundo do mar.
Não mais brilhar,
E o amor se apagará,
E o céu se entristecerá,
Por saber que a estrela
Ao cair não mais voltará,
Por que na terra ela resolve ficar.

Ademauro Coutinho

Minha Palavra

Eu estou triste agora, porque palavras são fáceis de serem ditas.
Eu não posso garantir a verdade de tudo o que eu já disse.
Você apenas acredita em mim, apenas acredita, e apenas enquanto quiser...
Um dia qualquer pode desacreditar de tudo...
Eu estou triste agora porque você é o meu foco, mas eu não o encontro.
Estou triste porque está chovendo, e como posso mostrar isto pra você?
Eu não posso lhe fazer ouvir a chuva caindo neste instante, mas ela cai em mim... E você apenas acredita enquanto quiser.
Eu queria os seus cuidados, mas seus caminhos se desviaram.
Estou triste porque agora está chovendo mais forte, e você pode duvidar disso.
Palavras são palavras, e eu não posso provar-lhe a verdade dessa chuva que cai.
Eu não posso lhe garantir que eu vivo todos os dias como se fossem um mesmo dia.
O tempo não passa pra mim, porque espero debruçada na incerteza.
O tempo não passa para o que eu sinto.
Aqui dentro tudo foi ontem, ou a alguns minutos...
Eu estou triste agora, porque você não sabe o que se passa comigo.
Eu estou triste porque eu jamais lhe vi chorar, mas sempre me vejo.
Eu corri e não saí do lugar.
Estou triste porque as palavras podem ser levadas ao vento.
Assim como as suas se foram.

Suely Araújo

A dança da vida.

Escolhido para viver
tendo como legado,
sofrer não sendo amado.

A vida confusa
com morte prematura,
de natureza obscura
gerada na musa pura.

Herdando medo ancestral,
permitido mau
contido no peito.

Acostuma a ser desfeito,
pois nada mudará
e ficará do teu jeito.

Mesmo que esteja vazio o armário,
festeja no coração amor relicário.

Sandro Gonzaga

Preconceito

Cadê?
Essa natureza não nega.

Discriminação por causa da raça
Dessa raça humana
Onde somos iguais.

A alma que fala por si
Tem uma estátua.

Cravada em seu peito
Um punhal de cristal
Submisso ao tempo
A todos os derrotados
Pela invenção antiga
De se fazer em si
Um propósito para a vida.

Aberto estão os ouvidos

Vejo.
Nas ruas, cidades, estados,
Tapam os olhos.
O mundo dorme tranquilo
Com seus remédios tarjas pretas.

Falo.
Grito.
Todos amplificam seus próprios ruídos.
Nas pontes, praças, escadarias,
Bêbados reunidos.
O mundo se alegra omisso ao que sempre sonhou.

Ouço.
Abertos estão os ouvidos.
Abertos estão os ouvidos.
Escutem!
É silêncio?
Não há resposta.
Por que o silêncio?
– Aberto estão os ouvidos.

Philippe Wollney

A Bailarina

Gira, gira sem parar
Sem cair, sem cansar
Sem sorrir, sem chorar

A sapatilha rodeia no ar
Na plataforma a desenhar
Um coração, só em tocar

A música – toca, toca
A bailarina – roda, roda
Na caixinha – dança morta.

Mayra Le Fay

Belchior me lembrou (old kids on the block)

Eu, filho do silêncio,
Pots mortem natu (quase
Nasci em 62) já sentia:
Jacente ia uma geração,
Berço da minha,
Numa saudade inexplicável,
Que não podia ser minha,
Que não me pertencia!

Mas a alma – isto é, a poesia –
Que tem uma memória grande e bela,
Me disse: John e Beatles
E Dilan e Ave! Haja Sangria
- houve uma hemorragia anímica em mim.
E hoje o mundo todo (agora
Estou com vinte e oito)
Parece concordar que a competência
De ser e de sentir
Nós perdemos
In the 60s and the 70s, man!
Some-se a isto uma pitada
beatnic-cazuza leu esse mosaic.

Marcelo Arruda

À Amarante que nem me conhece!

Ah!
Amarante, Amarante
Berra em meus ouvidos
Sua poética inebriante.

Ah!
Amarante,Amarante
O que dirias de mim
Se soubesses que és meu amante?

Marcelly Vidal

INVENTÁRIO

Cortem-me em pedaços
E sirvam-me aos caranguejos
(irmãos de sangue)

Guardem apenas meus olhos
No ponto mais alto
De suas cidades

Só não toquem
(por favor)
Em minhas palavras
Estas
Deverão permanecer acesas
Sempre à procura
De uma condição humana.

José Torres
Livro verso avesso – 1987

Afta

Afta

São muitas as frases
Que saltam franzinas
Da boca, a afta:
Franz Kafka.

Cristina Souza

POETAS [2]

POETAS [2]
poetas comem na calçada riem no chão dormem nas nuvens, pois qualquer sofá, qualquer lugar é apreciável. marginais, andam do Pátio de São Pedro – negro – à avenida – Conde da Boa Vista. cantando na noite, sem maiúsculas nem pústulas, mas talvez numa prece póstuma

Carol Vitall

Sangue na Lua

Caianas como organismo pulsante
Estradas rubras como artérias.
Ao olhar, harmonia deslumbrante,
Há movimentos suaves de folhas
Iguais a músicos e cantantes
Sob a batuta do vento.

Caianas como organismo pulsante
Estradas rubras como artérias.
Ao entrar, tudo mais interessante,
Nas artérias me afogo em sangue
Humano de outros cortantes
Da cana caiana

Lá, dentro das canas,
Não sei quem fui
Meu fim ou início não importa
Fui cana, terra e sangue.
Fui anjo ensangüentado
Capaz de voar até a lua e lá
E sujá-la com respingos

São Jorge?
Não! Protesto sanguíneo.
Sujei a lua para limpar
Almas ticuqueiras

Caio Dornelas

Desamparado

Os pais o deixaram
Vivendo em uma imensa solidão.
Entrando em uma depressão
Desamparado então,
Por viver nessa imensa solidão.

Ademauro Coutinho