25 agosto 2008

Às teclas pretas do piano.

Que bonitinha, não é? Os comentários escorriam da sala para o quarto, enquanto os longos cabelos eram presos com um laço discreto ao extremo. Em cada minúcia se sentiria a perfeição no preparo, tal como aquelas atrizes que estão prestes a entrar para a cerimônia de premiação. A saia, pronta para cumprir o dever, apertou a cintura, olhou para o espelho, do reflexo via a franja esconder-se às orelhas, o brilho dos lábios diminuindo, o dos olhos tentando aumentar. A luz foi apagada, deixou a menina correr para brilhar.
A família sentava confortavelmente, a tia batia discreta na mão do filho que arranhava o assento. Jacarandá-da-bahia, lindo, dava dó de sentar. O ambiente era bastante descontraído, muito agradável, uma cama acolhedora de sensações. Cecília, mãe dedicada, esforçava-se ao máximo para não escancarar a satisfação. No centro da sala, o piano. Antigo, mas como todo vintage que se preze, inesquecível a qualquer olho que o debruce. Eis que todos vêem a menina dos olhos chegando absorta, contemplando todo espírito do local. Na sala a cara de tia da tias, o pirralho tentando riscar o móvel, a mãe no tino de sempre, aguardando o sublime espetáculo. Vê que linda é minha filha? Precisa ver como toca, um anjo só! Linda mesmo a sua filha. Mãe, posso ir no banheiro? Que menino chato! Espera terminar a apresentação da sua prima! Faltou organizar a iluminação, mas os presentes não ousavam se queixar. Era só um detalhe perto da luz que logo encheria a saleta. Glória a Deus, todo poderoso, por me dar a dádiva de ter filha tão... Tão...
Dava pra sentir no último fio de cabelo a tranqüilidade com que a garota alongava os dedos, fitando as teclas do piano. Estas, por sua vez, choravam, criavam infindáveis marolas com as lágrimas. Marolas de um pesar que alegrava. Que canção linda! A tia só seguia as palavras de Cecília, que bem sabia quão bela era a tragédia. Dó menor. E a frieza que a música exigia exalava da garota. Uma frieza compassada, respirada em cada intervalo, causando calafrios na platéia, quase nenhum erro.
Quase.
No meio de um trecho tão complexo era de se perdoar que uma nota saísse lugar, ainda mais sem a partitura para a ajuda. A mãe parece ter sido a única a notar, fez meio que um aplauso forçado para disfarçar. Bravo, minha filha! Excelente! A tia aplaudiu em seguida, enquanto o menino fugiu sem ser notado, em busca da felicidade. Os olhos de Cecília, nadando entre marolas sutis como as teclas, orgulhavam-se, enquanto os dedos da menininha concentrados despencavam sobre o piano.
Chega um trecho alegre, bem mais difícil, conduzindo as emoções dos ouvintes. A cara de tia agora era de fã incondicional. Bravo! Esta menina é maravilhosa! Não sabia de nada, mas o entusiasmo contido de Cecília merecia ser manifestado, nem se tivesse que ser por outra pessoa. E descem e sobem escalas com uma desenvoltura assombrosa, quase não se vê o rosto da pianista, debruçada sobre o piano para não perder a concentração, tão grande essa que fazia sorrir às teclas, ao menos às brancas. A mãe rezava baixinho em agradecimento e proteção, especialmente enquanto a canção entrava na parte mais difícil, onde tinha de imbuir-se de um ódio que fervilhasse para culminar nos taciturnos interlúdios do começo, encerrando sua representação. Torço por você, minha filha.
As teclas, felizes, cantarolavam veloz uma melodia que deixava a todos sem ação, criava uma catatonia, uma catarse interna, um infinito de apenas 13 segundos. Eis então o tropeço. Visível. Audível. Perdoável. Com desenvoltura, o mais rápido possível, a canção foi retomada, uma bela frase encerrou a obra de arte. A mãe aplaude, menos contida que anteriormente, com lágrimas nos olhos. A tia segue os passos, eufórica ajoelha seus aplausos em reverencia à apresentação, apesar do pequeno lapso. Tudo acaba bem, o pirralho volta para a sala e pergunta do lanche, dando os parabéns à prima. A menina via os olhos de todos. Felizes. Todos se dirigiam para a cozinha. Cecília aplaudia já comedida, olhava fixamente a filha. A mocinha agradecia com um sorriso, enquanto fitava os olhos da mãe; olhos de palmatória.


[Wander Shirukaya]

2 comentários:

Wander Shirukaya disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Wander Shirukaya disse...

D ond conheço esse autor?
xD