Coma-me pelos meus pés, pelos meus anos, pelos meus pêlos e por meus enganos.
Coma-me por entre os dentes, pelos meus poros mais profanos, pelos medos, pelos talheres e charutos cubanos.
Pela fumaça da desgraça, pelo incêndio dos meus desejos, pelas ruas ou calçadas, coma-me por entre seus beijos.
Coma-me pelos lençóis entre sua fome, enquanto lhe permito provocar meu próprio grito, apenas coma-me.
Além dos seus olhares, dos seus tocares, dos seus beijares, coma-me com a sua capacidade de ser meu homem.
Coma-me pelo corredor, pelo fogão, sem deixar farelos de amor ou qualquer sobra pelo chão. Coma-me depois de comer, depois de beber, depois da digestão.
Depois de fazer amor, depois de me lamber, coma-me com o seu querer.
Enquanto houver minha vontade coma-me com voracidade.
Enquanto não lhe vomito, coma o meu espírito.
Coma-me coberto ou despido, coma o meu corpo e o meu vestido.
Depois de respirar, mastigue-me um pouco mais.
Depois de me engolir, coma-me sempre mais.
Seja faminto de mim, de um estômago sem fim.
Coma-me qualquer parte, de qualquer jeito, barriga, orelha ou peito.
Meu pescoço, meus ombros, minha feiúra, minha beleza.
Coma-me antes e depois da sobremesa.
Coma-me sobre a cama, devore-me na mesa.
Minhas unhas, minhas pernas, meu queixo, meu umbigo, coma o meu eu que lhe deixo mais faminto comigo.
Coma os meus créditos, meus saldos positivos, meus neurônios, meus dispositivos.
Minhas sandálias vermelhas, meu batom garoto, e meu batom,
em mim tudo o que houver de bom.
Coma os peixes do meu signo, meu penar, meu designo, o avião da minha boa surpresa, a velocidade da minha natureza.
Mastigue o meu punho, minhas veias azuladas, meus ossos, minhas almofadas, meus ouvidos, meu carpete, meu absorvente, meu cotonete.
O sal da minha doce pele, o mel que eu lhe revele, o que me houver de esculpido, coma o meu salto pisado e cuspido.
Coma-me disciplinadamente, com o equilíbrio de um delinquente, coma o juízo de minha cabeça, os meus cabelos em meu pente.
Devore em mim cada parte, coma o meu mundo, Vênus ou Marte.
Meu planeta em seus gametas, meu céu azul ou vermelho,
meu coração aos cacos, e o vidro do meu espelho.
Mastigue o meu raciocínio com algum derivado de laticínio, minha carteira de identidade com a santíssima trindade.
Coma-me de frente e de costas, com flores e velas postas.
Em corpo presente, em alma, em mente, devore-me cheio de gana e desejo eloqüente.
Uma mordida seguida de beijo, com sabor goiabada com queijo.
Eu, Romeu e Julieta comidos, em cada trovão ou relampejo.
Na loucura de um doido varrido, numa procissão ou num cortejo.
Coma-me nesta rua, na UTI, no Hospital das Clínicas, nas dores sem remédio.
Num precipício, num hospício, na sacada de um prédio.
Coma-me sofrido, entorpecido ou gótico,
em seu estado mais crítico, no seu gesto mais erótico.
Coma-me temperada com orquídea, na TV ou qualquer mídia, num protesto, ou manifesto sem nome, enquanto me manifesto em sua fome.
Devore o meu tesão, minha carne, minha história.
Mastigue o meu corpo e engula a minha memória.
Suely S. Araujo
2 comentários:
Carambaaaaaa... essa poesia tá cortada pela metade praticamente...
Confira ela inteirinha na postagem "Minhas Poesias III", no www.estrelas-para-mim.blogspot.com
Será que tu se enganou ou cortou pelo fato dela ser enorme Wollney???...
Bjo, Suely
desculpas, a atual está na integra.
abração.
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